23 dezembro 2006


Acabarei por partir, sabes? Acabarei por me fartar de não ser nada nem ninguém e invisível aos teus olhos e principalmente para os teus olhos. Tu sabes que eu estou sempre aqui, e sempre te tem sido possível abraçar-me quando queres. E que sempre tenho estado aqui para te mostrar que és muito, muito mais do que o mundo tantas vezes te disse seres. Mas um dia, qualquer dia, acordo cheia de sol, porque ele nasce também para mim, e, acabarei por sair do teu lado. Tu conheces-me melhor que todos, e melhor do que queres fazer parecer. E sabes que vai ser assim. E será que não é isso que aguardas? O dia em que me vês, também eu, crescer, em asas e tamanho e fazer-me ao mundo, calcorreando-o, descobrindo-o, e, fazê-lo também mais meu, conquistando-o? Acabarei por partir, eu sei-o, tu sabe-lo. Ambos o sabemos. Mas hoje, tu fazes de conta apenas que não me vês, e eu faço de conta que te sou invisível aos olhos, e hoje ambos fazemos de conta que as nossas presenças são quase tão transparentes e que não damos um pelo outro. Mas o tempo, aquele sábio conselheiro que tudo nos faz esquecer, atenuar, esmorecer, decrescer deu-nos o tempo de também amadurecer.

18.12.2006
(foto de Eduardo Costa Freitas)

2 comentários:

joão marinheiro disse...

Sabes amiga minha que vou descobrindo aos poucos. Todos acabaremos por partir, de vários cais de embarque, das variadas paragens de autocarros, das várias vidas que se cruzam connosco. De nós mesmos quase sempre. Depois imaginamos se verdadeiramente nos conhecem melhor que todos…verdadeiramente, eu não sei. Todos os dias me surpreendo. O desconhecido acontece. Abro os olhos e fica um vazio enorme. Só o tempo cura, eu sei, estou cheio de cicatrizes invisíveis.

Deixo-te estas palavras que são perfeitas:

Quero fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.
Já ninguém quer viver um amor impossível.
Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito.
Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito.
Porque faz sentido.
Porque é mais barato,
por causa da casa.
Por causa da cama.
Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais,
discutem tudo de antemão,
fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado.
Os amantes tornaram-se sócios.
Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.
O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível.
O amor tornou-se uma questão prática.
O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade,
ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro,
do amor cego,
do amor estúpido,
do amor doente,
do único amor verdadeiro que há,
estou farto de conversas,
farto de compreensões,
farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos,
tão cobardes e
tão comodistas como os de hoje.
incapazes de um gesto largo, de correr um risco,
de um rasgo de ousadia,
são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina,
malta do "tá tudo bem, tudobem",
tomadores de bicas,
alcançadores de compromissos,
bananóides,
borra-botas,
matadores do romance,
romanticidas.
Já ninguém se apaixona?
Já ninguém aceita a paixão pura,
a saudade sem fim,
a tristeza,
o desequilíbrio,
o medo,
o custo,
o amor,
a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e
que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor não é para ser uma ajudinha.
Não é para ser o alívio,
o repouso,
o intervalo,
a pancadinha nas costas,
a pausa que refresca,
o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,
o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso.
Odeio os novos casalinhos.
Para onde quer que se olhe, já não se vê romance,
gritaria,
maluquice,
facada,
abraços,
flores.
O amor fechou a loja.
Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor.
É essa beleza.
É esse perigo.
O nosso amor não é para nos compreender,
não é para nos ajudar,
não é para nos fazer felizes.
Tanto pode como não pode.
Tanto faz.
É uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar,
para nos levar de repente ao céu,
a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A vida às vezes mata o amor.
A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio,
não é um fim,
não é um princípio,
não é um destino.
O amor puro é uma condição.
Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.
O amor não se percebe.
Não dá para perceber.
O amor é um estado de quem se sente.
O amor é a nossa alma.
É a nossa alma a desatar.
A desatar a correr atrás do que não sabe,
não apanha,
não larga,
não compreende.
O amor é uma verdade.
É por isso que a ilusão é necessária.
A ilusão é bonita, não faz mal.
Que se invente e minta e sonhe o que quiser.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A realidade pode matar,
o amor é mais bonito que a vida.
A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre.
Ama-se alguém.
Por muito longe,
por muito difícil,
por muito desesperadamente.
O coração guarda o que se nos escapa das mãos.
E durante o dia e durante a vida,
quando não esta lá quem se ama,
não é ela que nos acompanha
- é o nosso amor,
o amor que se lhe tem.
Não é para perceber.
É sinal de amor puro não se perceber,
amar e não se ter,
querer e não guardar a esperança,
doer sem ficar magoado,
viver sozinho,
triste,
mas mais acompanhado de quem vive feliz.
Não se pode ceder.
Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra.
A vida dura a vida inteira,
o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira.
E valê-la também.

ELOGIO AO AMOR

Miguel Esteves Cardoso

Fica com os murmúrios das águas doces e salgadas...

algevo disse...

Meu muito querido amigo João, as tuas palavras vão para lá da perfeição. Como entendes por completo e por dentro de cada sílaba que escrevo.

O vazio com que te deparas sempre qe abres os olhos não se deverá também a uma certa (nehuma) pouca vontade de veres o que se deita aos teus pés? De veres até onde a tua vista realmente alcança?

O vazio cura? Nem sempre. Mas esmorece e amadurece. Isso sem dúvida. E as cicatrizes invisiveis, essas são as que fazem realmente a tua estória.

Estou sempre aqui meu querido Amigo. Sempre. (hoje com cheiro a chocolate e canela e leite condensado... - e por isso mais doce!)

Beijos (muitos, hoje) daqui de onde o rio se junta com o oceano.

Também tua,
I.