28 dezembro 2006

Esta é mesmo a última carta que te escrevo. Esta é mesmo a definitiva. Aquela com que encerro este ciclo de dores, utopias, alegrias fingidas e de pássaros de asas cortadas. É com esta que te encerro o cheiro numa caixa no mais fundo do meu sentimento olfactivo e com que criarei uma armadura anti cheiros, para que não me voltes a tomar de assalto como se de uma princesa encerrada na mais alta torre eu me tratasse e apenas o teu cheiro me conseguisse salvar. Nunca me salvaste. Apenas me encerraste ainda mais fundo nos pavores do mundo que todos temos. E tu, mais que ninguém, terias a obrigação de me saberes e reconhecer, depois de anos, aí longe, enclausurado por trás desses muros, ouvindo-me e reconhecendo-me no cheiro do papel branco sem linhas e nas letras sempre azuis e tortas dos t´s dobrados. Soubeste-me ainda mais tua quando os envelopes azuis pintalgados de letras azul escuro te chegaram às mãos todos os dias do resto da tua vida naquele pedaço de tempo que se fechou por trás daquela construção de onde apenas ouvias o mar, sem que o pudesses ver e desfrutar. Agora que és quase livre como o mar, estás quase solto como o rio, que já podes navegar na tua semi liberdade, concedida por pessoas que não te sabem a cor dos olhos e o cheiro da alma, descubro-te afinal, novo e recém nascido. Diferente daquilo que te sonhava. Sim, porque apenas te sonhei nestes longos dias de pura invernia em que te viste afastado dos teus amores – onde eu não me contei, quase nunca – e fizeste de camas alheias o teu melhor leito. Esta tem de ser a minha última carta para ti. Não te chegará às mãos, porque nunca as soubeste ler, tal como nunca me soubeste salvar da torre mais alta em que me encontro, quase, enclausurada. Porque não me soubeste medir, constante, presente na tua sombra. E quando te viste livre das camas alheias, dos muros altos, das divisões permanentes e das contagens frequentes não me soubeste dar a tua mão e afagar-me a minha pelo tempo que te esperei. E eu fiquei desolada, porque aquilo que sempre adivinhei debaixo da tua pele e no teu olhar vago, nos teus silêncios cortantes e nas tuas ausências, nas tuas faltas de audição e nas nossas faltas de resposta, afinal não adivinhava, sempre te soube pertença apenas de um mar que te fez navegar para águas profundas onde já nem as sereias te podem salvar de ti próprio, dessa tua solidão cavada pelas tuas próprias mãos. É por isso que tenho de te encerrar e escrever a última carta, mesmo que ainda e depois continues a gritar em mim, permanente e constante, fazer de conta que não te oiço e que não te vejo, porque neste Dezembro frio e com este sol baixo e vagaroso corro o risco de me perder algures na tua busca. E não o posso fazer. Não me posso perder. Pelo menos ainda mais. Não quero perder o sorriso franco e fácil. Não quero perder o calor das mãos e o toque fácil que me caracterizam. Já me bastam os silêncios que me tumultuam. E este é o fim das minhas linhas para quem ainda, lentamente, de tempos a tempos me vem tomar, como se eu ainda te escrevesse diariamente. Mas já não escrevo. E não voltarei a escrever. Para que o riso me continue sempre fácil. E para que a tristeza não me aflore sempre os olhos. Vou crescer. Sem ti, é óbvio. Mas ambos tomámos essa decisão e enveredámos por esse caminho. Largámos tudo o que nos pudesse recordar um do outro e abandonamo-nos num caminho de onde o outro não soubesse sair sozinho. Mas tu sempre foste muito grande e não sabes perder o rumo. Tomaste o azimute da tua vida e partiste. E eu tenho de tomar o meu. Porque aqui o Inverno tornou-se frio e não quero morrer aos teus pés, que já aqui não estão, sozinha. Despeço-me. De ti. De nós. Das poucas noites que passamos juntos. Dos teus braços que me tomaram como tua, em noites de tempestade e calmas de maresia acentuada. De noites de gaivotas gritantes em que me fizeste tão tua. Despeço-me. Despeço-me. Ouviste, não ouviste? Despeço-me. Mas tu não me ouves e eu não te quero a ler-me para que não me leias por dentro também. Mas despeço-me.

19.12.2006

4 comentários:

João Carlos Carranca disse...

Guarda sempre mais uma carta para escrever mais tarde... há sempre uma vez mais tarde para dizer coisas... como verás um dia destes lá na sanzala...

algevo disse...

querido jota,

tenho sempre papel e caneta e nunca borracha, porque escrevo. Maior parte das vezes as cartas não chegam é ao destinatário. Mas tenho sempre mais alguma coisa para dizer. Hoje penso que disse tudo, mas amanhã lembro-me que ainda não falei disto ou daquilo. E fica sempre para a próxima.

Zango-me ao tentar pôr comentários no teu blog... pede-me as letras sei lá quantas vezes, por isso acabo por desistir... mas também te posso dizer por aqui que ler-te é sempre fantástico, mas nos últimos dias...tens-me dito muito mais do que escreves. Percebes-me?

Beijos e beijos

I.

joão marinheiro disse...

Sabes que tambem escrevo cartas...As respostas é que tardam, ou não chegam, ou então as cartas perdem-se...
Abraços.

algevo disse...

João,

sabes que o que não chega a nós é porque não interessa. E se chegar tarde, é porque não está na altura certa.

Abraços, também, daqui de onde o rio se junta com o oceano.

I.